Sable Constantine e as Estátuas de Kuluak-Tu

Elton Mesquita
11 min readFeb 25, 2021

– Não. Nada. Ninguém. Nunca.
– Sim.
– Perdoe a veemência.
– À vontade.
– Deus é testemunha.
– Relaxe.
– Fácil falar.
– Vai ficar mais fácil. Continue.
– Cheiro de papel jornal me dava ânsia de vômito. Se alguém ligava a televisão no noticiário, eu gritava. Se fossem notícias internacionais era capaz de sair a socos.
– É natural alguma confusão.
– Eles estão estudando a síndrome. Todos os agentes de informação e desinformação, propaganda e contrapropaganda. Espiões, contra-espiões, espiões triplos… Uma vez eu conheci um espião quádruplo. Depois de um tempo passou a gravar as próprias conversas, “de sacanagem”, mas a gente via aquele esgar meio esquizo assim de lado, e ria junto pra não constranger… Vetores de disseminação memética transbordando, deepfakes de vídeo e agora também de áudio (você tem que ver a cara das pessoas ouvindo a própria voz dizendo coisas que elas nunca disseram, é hilário). O resultado é que todo mundo está pedindo arrego. Ninguém sabe mais em que acreditar. A verdade sai da barriga quentinha de máquinas Xerox, 24h por dia (as coisas mais fudidas agora estão só em registro físico porque os imbecis mais poderosos do mundo continham usando senhas tipo “senha123"). Papel quentinho negando, alterando, confirmando, criando os fatos HAHAHAHA me desculpe, eu não posso falar “fatos” sem HAHAHA.
– Vai ser filtrado.
– É um tipo mais nocivo de pirronismo, contagioso como gripe, nojento como doença da vaca louca, a gente está trabalhando com quatro níveis de contra-informação a essa altura, só pra filtrar o ruído leva semanas… E as mortes? Na Agência a gente fica cantarolando “Oops I Did It Again” — semana passada arrebentaram com a família (empregada, cachorro, amiguinho da escola, o caralho a quatro) dum parlamentar, quando quem era pra ter morrido era uma violinista japonesa, está uma zorra, e piorando… em se plantando, tudo dáHahaha.
– Ah. Humor. Sem humor, por favor. O gravador não gosta.
– Deixa eu te falar de humor. Essa perua viúva dum magnata que a gente apagou com toxina de baiacu tava com o motorista no chalezinho, quando — e isso que a gente deveria ter desgrampeado o lugar, mas alguém deve ter resolvido fazer umas fitinhas pra vender (os segredos vergonhosos brotarão como trufas, anos adiante, embaraçando você no meio de um discurso)… Eu podia contar tantas histórias… orgias com sangue, pássaros, tamakeri , uniformes… O tipo de nomes que andam de envelope em bandeja de prata.
– Imagino.
– A gente tava bebendo no bar fora de serviço (um modo de dizer. Ninguém nunca está “fora de serviço”, nesse tipo de serviço. Estávamos relaxando), e esse cara me conta que então batem à porta da cabaninha, e as câmeras lá em tudo que é buraco. A mulher mete a cara pra fora da porta e tá lá o maridão preto que nem uma azeitona, inchado, espumando que nem frieira. HAHAHA. O motorista deve ter se achado o sujeito mais azarado do mundo: O defunto ali na porta, dando tipo uns passos de break…
– Ataxia locomotora extrema. Tão improvável que um caso exagerado deu origem a dezenas de lendas urbanas. Como essa que contaram a você. Por favor, eu sou médico.
– Hehe, tudo bem, doutor, não acredite em tudo o que eu digo, mas sei que o senhor, com seus anos de experiência, vai saber colocar as coisas em perspectiva… Eu sou um agente treinado tentando escapar aqui dessa sua Cadeira da Morte ou sei lá o nome, eu realmento acredito nas lorotas que conto, esses fios de baba de contra-criação –
– Sem linguagem poética, ou o que quer que isso seja, por favor. O gravador não gosta.
– Que nem uma aranha cínica, e já estou acreditando antes de terminar a frase, é o tipo de atitude que paga bem num cassino flutuante clandestino, ou numa mesa de tortura…
– Então, veio a queda.
– O pirronismo, e eu perdi o pé completamente. Nas fotos da época, eu vejo que deixava umas áreas do rosto sem barbear. Pedaços da camisa pra fora da calça, manchas de comida. As pessoas diziam “‘A’ é ‘A’” e eu tinha acessos, ficava violento. Pensei em futucar o dente velho…
– Que aliás nós extraímos. Só pra você saber.
– Ãh? Ah! Seus…
– Seu dente falso, nós que instalamos. Suas contas, nós pagamos. E agora vamos escrever em você de novo.
– Minha cabeça dói só de pensar na confusão, nos níveis e subníveis e contra-níveis, nos desmentidos e versões oficiais e extra-oficiais, nos documentos que o pessoal altera já sem o mínimo cuidado, na base do corretivo líquido, porque ninguém mais dá a mínima… deixa eu te contar, eu estava namorando essa espanhola… narigão, nerviosa, acendia um cigarro no outro, quando trepava parecia que estava descontando a raiva, sabe, ficava dando uns berros desconcentrantes “AAAAH! GRAAAAGH!”, mas enfim…
– Nem imagino. É uma vida solitária, aqui no laboratório.
– O que eu não daria… aqui é limpo, organizado e silenfmmmmmmmmmshchhlepppppp!
– Deixa eu limpar isso.
– Que vergonffffmmmmmmm!
– Relaxe. Os músculos se soltam. Normal. É o…
– É o Pentotal, ssshiim.
– Ah, sim. Pronto.
– Então, deixa eu te contar, rapaz, tem algo assim em você, nesses seus óculos, eles… eles adoçam seus olhos, sabia… esses olhões azuis boiando… plácidos. A gente… confia neles…
– Bondade sua.
– Ela… ganhou uma grana preta fazendo pressão na mídia… Muito inteligente, com um faro pra sacanagem… Montou uma equipezinha de tevê, um câmera, um contra-regra, um tradutor, o maquiador recebia mais que todo mundo, era o trabalho mais importante. Então eles ficavam fumando bremfa e rindo, falando merda, sei lá… ela me dizia que era um mundo à parte, eles estavam fazendo um tipo de teatro mais político que Ionesco ou Brecht, algo além do teatro, um ritual de magia simpática. Eles recebiam das partes interessadas — no fim o mesmo pessoal velho de sempre, aqueles putos nos nichos certos, com as conexões certas, os putos sinistros, CIA, pedaços auto-replicantes da velha KGB dividindo-se como planárias, cada vez menos rastreáveis, os eleitos divinos do Oriente Médio, gente com um propósito tão urgente e real que quando entra na sala você sente as tripas dando nó. Mas enfim — então eles recebiam envelopes com pessoinhas dentro — ela me mostrou um enquanto abria, eu achei que ouvi um suspiro quando ela rasgou o envelope da FedEx e caíram carteiras de identidade, de motorista, uma penca de documentos-fantasmas pros homúnculos, fantasmas ocos que pode apostar, ainda vagam por aí, Johns McCullochs, Yulias, Kristinas, Pedros, números de seguro social, fotos com amostras de vestuário, todo o material necessário para dar alguma consistência pra reféns imaginários, pra fazer pressão na mídia, e se você quer que o Premier saia mal na foto você pega meia dúzia de atores, compõe um cenário de célula insurgente com uma bandeira adequada no fundo da parede e procede ao degolamento com bastante ketchup. Mas se você for checar, não tem mamushka nenhuma em Minsk chorando pelo seu Grigori, não tem família nem amigos sentindo falta deles. Como firmar o pé no meio disso? Quem checa as fontes, quem checa quem checa as fontes? Quem são as fontes? A História era uma catedral se erguendo com um senso de propósito visível em direção ao céu. Agora estão barateando o material de construção, metendo areia, improvisando, tocando de ouvido, e fodam-se os pobres filhas da puta azarados nas áreas de conflito, Deus queira que sobrevivam o bastante pra cavar um empreguinho na obra quando os trabalhos de reconstrução começarem… estou falando demais de novo, não é, doutor? Eu vou te matar, eu falei? Eu vou descer daqui e arrrrr
– Não se preocupe, vamos filtrar.
– Essas coisash.
– Você ficará livre de preocupações.
– Eu eshtou calmo.
– Vai ficar mais. Vai alcançar a ataraxia. Serenidade perfeita, pelo menos até mandarmos você pras ruas de novo.
– Hein? O — UH! Espasmo.
– É do Pentotal. Ataxia locomotora. É a toxina. Por isso os espasmos. Ataxia no corpo, ataraxia na mente. Você vai entender porque nas fotos os homens-bomba estão sempre sorrindo.
– GUH! Então o joguinho de vocês é lavagem cerebral, hein? Estão formando uma seita? Eu tenho gatilhos em dezenas de idiomas plantados no subconsciente, programados pra executar rotinas diárias de disrupção de ondas alfa. Ninguém me hipnotiza, seu esSUH!
– Por favor respire. Gostamos da sua voz nítida. E não se agaste. Nós vamos formatar tudo. Seu programazinho eletroencefálico — nós que instalamos. Dada a postura algo caricata de alguns de meus colegas, não acho improvável que você já tenha ouvido essa história antes, de um deles, proferida no tom ridículo do vilão que finalmente revela o plano: Nós chamamos vocês de papel, porque escrevemos em vocês. Na verdade, o termo que usamos é “palimpsesto”. Antes era da direita, agora será de esquerda, antes era ateu, agora frequentará novenas. Nós rearranjamos vocês, homens temporários, como quem troca as roupas de uma boneca de papel. Antes era loiro, agora será negro. Negra. Vai ganhar um par de peitos de fazer inveja a Turing. O que me lembra. O diário. Era meu. Você me seguiu que nem um cachorro de judeu, da? O sangue ainda fala. Sou eu quem você procura.
– Você matou o Prof. Turing. Eu sabia. военный комиссар Prof. Dr. Lazar Ignatyev, eu vou sair desta cadeira e matá-lUH!
– A tentação de cortar aquelas mamas grotescas enquanto ele se contorcia com a boca cheia de maçã… Já fingi minha morte sete vezes. Mas isso foi antes. Agora já não preciso. Perdoe a eloqüência.
– À vontade.
– Deus é testemunha.
– Não mencione Deushhh.
– Hoje, não preciso me esconder. Antes era bom, minha juventude viu o melhor dos homens e do mundo, não havia ONGs e trepávamos sem camisinha. Um colega meu com menos senso de propriedade talvez risse malevolamente agora.
– À vontade, doutor.
– Mas não.
– Quantos esqueletos, mesmo? Pra qual museu?
– “Universidade”. 115. Universidade Estatal de Leningrado. Teria sido lindo. Um corredor de concreto, letras entalhadas em placas de mármore negro raiado. Luz clara… Tabuletas de identificação, e os esqueletos de cada lado, talvez em posição de fazer-tarefas-diárias.
– Talvez com roupinhas.
– Agora você está sendo ridículo.
– Você olhou pra cento e quinze pessoas e considerou que o melhor que podia ter delas era a estrutura do esqueleto. Para estudo científico. E fez a requisição em triplicata com todos aqueles carimbinhos mágicos sinistros. Mas eu me perdi.
– É o Pentotal. Vai ficar pior.
– É? O gostinho azedo? Parece amêndoas.
– Você se gabava de ser um bom mentiroso.
– O melhor. Conseguia me convencer de coisas, fora de sacanagem. E me ajustava. Era um com o mundo. O mundo e eu ali, de mãos dadas. Meus dias de peixe grande. Eu era um peixe enorme.
– Tente minimizar as metáforas, por favor. O gravador não gosta de metáforas.
– Quis dizer num aquário pequeno. Poxa.
– Continue.
– Vocês não se interessam pela gente.
– Ora, não faça assim. Diga, você ingeriu algo antes da injeção? Fumou, cheirou?
– Não, nada… estava em jejum.
– Prossiga.
– Então eu não consegui mais mentir.
– Sei. A consciência. A gente apaga a filha da puta, e a filha da puta volta.
– Não, nada disso. O problema foi que eu vi… eu não entendo o que eu vi. Sofria da nova cepa de pirronismo…
– A epidemia.
– E então, enquanto o mundo externo ficava menos e menos confiável, sólido, o mundo interno…
– Oh não.
– É. Começava a fazer mais sentido. O outro mundo. No outro nível.
– Mau, mau.
– Comecei a ver coisas que não queria ver. Vi que nem tudo, aliás, que a maior parte das coisas não segue, nunca seguiu o mesmo esquema de pensamento covarde e mesquinho das Agências, responsável por coisas como o 11 de setembro ou Nossas Senhoras desenhadas com merda de elefante expostas em museus e respeitadas como arte, baratas com orelhinhas de coelho e rabinhos de algodão colados, dentro de uma redoma de vidro girando ao som de “I Will Survive”… A destruição do significado… O cinismo de adulto safo…
– Chris Ofili é um dos nossos melhores agentes. As fezes de elefante deram um toque de insanidade clínica à coisa toda. O homem é um gênio.
– Pros interesses de vocês.
– Pros nossos interesses.
– Mas vi o mundo antigo da dança dos símbolos, onde atos como esse de seu Chris não passam de gestos de crianças burras, irritantes. Se você olhar do jeito certo, você vê tudo, nu, que nem em estereogramas. Magia é uma maneira de olhar pras coisas. Tudo pareceu se dissolver, eu queria correr pra debaixo da cama. Eu continuava mentindo, mas tudo chegou a um ponto de… entendimento… sincronia… tão grande, que eu mentia e acontecia. Ficção pulava dos livros na minha cara. Era um balé santo. Pericorese 24 horas por dia, automóveis zanzando pelas ruas com coreografias de abelha, explosões solares influenciando protestos anti-globalização. A televisão falou comigo.
– Nunca consegui ver os tais esterregramas. Nunca consegui nem falar isso.
– É como se olha.
– Eu sei.
– Eu comecei a ver teias, linhas, fios, como mapas de metrô. Conexões, conduítes, níveis de acesso a entendimentos mais sutis. A maioria dos ateus é burra por não ter o senso de sutileza. A coisa é sutil, sutil como a boa literatura é sutil, o tipo de coisa que se você pisca, perde.
– Você fala de Deus.
– O Sr. Sutil em pessoas. Comecei a perder o sono. Comecei a pensar demais. A devanear. Escrevi poemas.
– Mau, mau. Sem poemas, por favor.
– Um poeta. Poeta. HAHAHAHAHA. Perdão, mas.
– Entendo perfeitamente.
– AAHAHAHAHA.
– Padres, poetas, psicólogos… feh! Aqui neste tubinho: interação eletroquímica entre enzimas, aglomerados de elétrons dançando num esquema invisível tão complexo que parece caótico. Ordens secretas, é ao redor desse conceito que meu mundo gira. A história da minha vida.
– Eu tenho medo de você.
– E não é o Pentotal.
– Eu tentava mentir e não conseguia abrir a boca, com medo de provocar ondas. Tudo fazia sentido, ao mesmo tempo. Eu tanto podia matar todo mundo no elevador ou não. Estava tudo no plano, ou não. Compreende que minha operatividade ficou comprometida.
– Quinze mortes, você há de concordar, foi um pouco demais.
– Eu estava tentando provar uma coisa.
– E se você tivesse chegado ao seu apartamento onde estava o resto do seu arsenal, o número teria sido maior. Nós rimos muito, mas claro que não podíamos tolerar isso. Foi por isso que o trouxemos, você, o palimpsesto, pronto pra ser raspado e re-escrito, sabe-se lá já há quantas vezes. Deve haver um registro em algum lugar. Suas células não sussurram pra você à noite, sobre o quanto estão cansadas? Vamos drenar essa cabecinha cheia de merda mística. Vamos dar uma melhorada no corpo, também.
– Não nos dê peitos.
– Relaxe. Se está tudo no plano, então isso também está no plano. Isso também está bom.
– É. Acho que sim. Mas sabe aquela história de nós ser um excelente mentiroso.
– Sim.
– Nós já me soltei, há alguns minutos. Vamos descer daqui. Mentiras dentro de verdades dentro de mentiras, histórias dentro de histórias, confirmações dentro de negativas dentro de confirmações. Você injetou um composto inócuo em nós. Nós arranjei. Nada de Pentotal. E nós estou com três metros de fio de aço enrolado e enfiado aqui conosco no cofre mais antigo do mundo. Fique aí doutor, que nós já estou descendo.
– Interessante. Claro que eu também não estou sem defesas. Mas vocês descobrirão. Venham, homenzinhos. Vamos ser antiquados e ineficientes uma última vez, só pelo gostinho.
– O que você está fazendo?
– Desligando. Agora começa a parte sem grav

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