perguntas e respostas para a matéria sobre “tem que ucranizar” que saiu na Foreign Policy

Elton Mesquita
8 min readFeb 27, 2022
  • Biografia resumida da dupla e objetivos principais.(Exemplo: Brasileirinhos foi criado em março de ___ com o objetivo de_____)

Brasileirinhos foi criado em dezembro de 2017 com o objetivo de se divertir e trazer a discussão cultural e política para o nível pessoal da consciência dos indivíduos, afastando-se do modelo formal, oficioso e viciado de clichês que tende a tratar as questões pelos seus rótulos e estereótipos.

  • Seria correto afirmar que a religião é parte integral do trabalho de vocês? (imagino que ambos sejam católicos, mas me corrijam caso esteja errado)

É correto. Somos Católicos, frequentemente mencionamos Jesus e a Igreja em nossos vídeos (embora não tanto quanto seria o ideal). Como parte de nosso esforço de trazer a discussão para o nível mais “chão” da experiência individual, enfatizamos o caráter psicológico/espiritual das questões que abordamos, frequentemente fazendo o contraste entre o fluxo constante das notícias e opiniões do dia com a Verdade imutável da religião revelada. Não existe perspectiva com maior profundidade psicológica que o Catolicismo, então essa é nossa arma e ferramenta principal para desmontar fetiches mentais no programa. Isso nos permite passar ao largo de questões ideológicas e nos concentrar no que há de humano (no sentido das paixões, temperamentos, apetites etc) de cada questão.

— → O que significa “ucranizar” pra vocês?

Como a terapeuta de casais Sandra de Sá explica na canção “Joga Fora”, relacionamentos abusivos devem ser tratados de forma firme e enérgica. Quem já se viu em um relacionamento do tipo sabe que chega uma hora em que a situação está tão desgastada que já não faz sentido tentar a reconciliação (Jesus Cristo afirma o mesmo quando diz “Ninguém coloca remendo novo em roupa velha; porque o remendo força o tecido da roupa e o rasgo aumenta.” — Mt 9:16). Toda a história política do mundo é uma narrativa de coalizões e dissolvimentos, uniões e separações. Nesse contexto, e considerando que o contrato político estabelecido entre governantes/legisladores e governados é um relacionamento, utilizamos o exemplo da Ucrânia como modelo do momento em que uma população, sentindo-se lesada em suas aspirações políticas, dá um basta de forma inequívoca a um relacionamento de co-dependência tóxica. Nesse sentido, “Ucranizar” (assim como o “jogar fora no lixo” da música) é a expressão simbólica de um sentimento de esgotamento.

É importante notar que, mais do que a literalidade de um gesto físico violento, que no final pode não surtir efeito prático nenhum, nos interessa a sinalização inequívoca, por parte da população, da sua insatisfação e desejo de término de relacionamento; a sinalização de que determinada classe política foi julgada inadequada para o cumprimento de seus deveres, e deve ser trocada o mais rápido possível (obviamente uma tal situação limítrofe implica o descrédito de todo o aparato jurídico-político que, em casos normais, cuidaria do problema pelas vias institucionais; para usar uma imagem simplificada, mas correta na essência, não faz sentido deixar a chave da cadeia com os ladrões). Mais ainda (e inclusive no interesse próprio dos políticos), nos interessa fazer lembrar a eles o nexo causal entre ações (e omissões) e consequências, nexo esse que há muito, pelo distanciamento físico da capital, a maioria já esqueceu. Ora, um político que não teme as consequências de seus atos é um tirano em potencial.

Nesse sentido, o mero uso do termo “ucranizar” em falas, tuítes, outdoors etc. já cumpriu esse objetivo, ao mandar o recado para os políticos de que a pior das consequências possíveis (pior que ser jogado numa caçamba de lixo) já aconteceu: a perda da autoridade moral sobre a população. E indica que o estado mental da população chegou ao seu esgotamento nesse assunto, e já não admitirá diálogo, tergiversações, adiamentos etc. No fim, trata-se apenas do retorno ao que sempre foi o normal no Brasil: uma saudável desconfiança dos políticos de carreira e fisiologistas. A “Ucranização” já aconteceu, pelo menos no campo psicológico. A caçamba de lixo não precisa ser literal, e a fixação em atos de violência pela violência em si nos repugna enquanto Católicos. Mas o efeito obtido é o mesmo: humilhação e desmoralização de uma classe corrupta e venal.

Nós do canal Brasileirinhos somos comunicadores, e os problemas da comunicação nos interessam muito. Assim, gostamos que a comunicação ocorra de forma clara e inequívoca, de forma que todos os envolvidos saibam em que pé estão. Cremos ter cumprido esse objetivo com essa re-orientação do pensamento de grande parte da direita nacional para a idéia de um “fim de papo”, de que é necessário haver uma grande renovação do corpo político.

Vemos o Brasileirinhos como uma espécie de lixão de toda a produção do audiovisual do século 20 e 21. Assim, absorvemos todo e qualquer estilo visual e sonoro que nos sirva no momento. Essa abertura para vários estilos adveio de nossa precariedade de recursos, que não nos permitia buscar e implementar um estilo específico e consistente. Quanto ao trumpwave e fashwave, que são variações do vaporwave, nosso uso é meramente incidental, sem significado ideológico, e se deu por uma confluência fortuita de fatores: A cultura mainstream se encontra exaurida, e há uns dez anos se encontra devorando e regurgitando a estética dos anos 80/começo dos 90 (neon, miami kitsch, windows 95 etc). Como calha de ser a década de nossa juventude, nos beneficiamos dessa ponte sentimental entre os jovens de hoje, que não viveram a época mas a idealizam esteticamente, e nós quarentões que a vivemos. Isso facilita nossa comunicação com o público mais jovem, mas como disse, foi um acaso feliz. Não nos incomodamos com o que outros possam pensar do uso dessa estética, e nós gostamos do Trump.

  • Vocês se incomodam ao ver o termo ucranizar, que vocês sem dúvida ajudaram a popularizar, ser usado por militantes como a Sara Winter e extremistas que pedem o fechamento das instituições democráticas? Podem explicar?

No nosso entendimento do funcionamento da cultura, não faz sentido se incomodar com os novos usos que um determinado artefato cultural venha a ter, uma vez criado. É por isso que reputamos a querela sobre “apropriação cultural” como apenas mais um dos zurros de uma cultura mainstream amnésica, que já não sabe como seus próprios pressupostos funcionam. Uma idéia é algo contagioso, e faz tanto sentido tentar barrar sua propagação quanto pegar água com uma peneira. Um documentário recente chamado “Feels Good Man” trata dessa questão, contando a história do meme do sapinho verde, o Pepe, que foi criado por um progressista mas foi adotado pela direita americana. É por isso que não faz sentido a reclamação recente de uma publicação de esquerda, a revista Vice, de que a adoção da direita brasileira do vaporwave seria algo “errado” pois o vaporwave estaria mais identificado com a esquerda, e que seria prova de bancarrota cultural, pois não estaríamos criando, apenas adaptando algo estrangeiro. Ora, todo o movimento modernista de 1922 foi fundado fazendo alarde sobre o fato apenas óbvio de que ninguém cria sozinho, todo artista recebe influências e as digere, processa e adapta. O quanto o Tropicalismo é invalidado pelo uso de guitarras elétricas e influências do rock? Quanto à acusação sobre o “roubo” de uma estética que pertenceria à esquerda: a prova do sucesso de um ato cultural é sua disseminação e aceitação ampla — o que funciona, funciona, e é a vitalidade orgânica e espontânea que identifica o movimento cultural como algo verdadeiramente vivo. Se isso foi o que aconteceu, a reclamação começa a soar mais como o lamento de uma ala ideológica que perdeu a chance de usar um elemento e se ressente do fato. Se existe “roubo” de estética, os angolanos que fetichizam as roupas e músicas estilo rockabilly são ladrões praticando apropriação cultural? Existe uma vertente estética chamada Churchwave que mescla os elementos vaporwave com elementos do Catolicismo. A própria revista do movimento, a Private Suit Magazine, tem uma matéria super tranquila sobre Churchwave. (Twitter da revista: @Privatesuitemag ).

  • Uma insurreição popular que “ucranize” o Brasil é uma perspectiva positiva pra vocês?

Não vemos sentido em falar sobre contrafactuais. Por isso tentamos ao máximo só nos manifestar sobre coisas que ocorreram ou que estão ocorrendo, pois aí nos basearemos em algo sólido, e não nas infinitas possibilidades e permutações de um cenário hipotético.

  • Vocês sabem detalhadamente o que aconteceu na Ucrânia a partir de 2014? Vocês acreditam que quem usa o termo ucranizar sabe o contexto político da Ucrânia na história recente? Isso interessa?

Não podemos pretender um conhecimento aprofundado sobre o ecossistema político ucraniano, mas sabemos os pontos salientes, vimos alguns documentários, lemos a respeito. Certamente temos uma imagem com a distorção do tempo e da distância, mas nos sentimos confiantes em falar sobre os aspectos mais gerais do evento. Sabemos que a educação histórica e política média do brasileiro é muito baixa, e por isso não cremos que muitos dos que usam o termo saibam em detalhes do que se trata. Como mencionei em uma resposta anterior, temos pouco interesse em moldar o modo como as pessoas receberão ou lidarão com o material que produzimos.

  • Ouvi um especialista que disse que a direita atual, de forma resumida, não trabalha com fatos, mas com narrativas. O que vocês avaliam dessa perspectiva?

Avaliamos que é a perspectiva de um especialista de esquerda. Curiosamente, ouvimos um especialista aqui dizer que a esquerda, de forma resumida, não trabalha com fatos, mas com narrativas. Como vê, é uma questão fascinante.

  • Na esquerda entende-se ucranizar como “deixar os neonazistas” chegarem ao poder ou algo próximo disso. Vocês, que já se disseram ex-esquerdistas, entendem esse receio?

Certamente. Esperamos ainda poder falar de, e quem sabe, exorcizar esse espantalho tão útil à retórica da esquerda, mas que atrapalha tanto qualquer tentativa de realmente sanar as divisões na alma nacional. Afinal, os esquerdistas têm razão quando dizem que com nazistas e fascistas não se conversa, apenas se combate fisicamente. Ora, se essa realmente é a descrição fidedigna da situação política atual no Brasil — neonazistas visando o poder — já não era para a esquerda estar preparando uma resistência física, visando ao combate e neutralização dos neonazis, como a dos franceses na Segunda Guerra, e não apenas uma resistência argumentativa, cultural e retórica? Por que eles estão tentando conversar ou convencer neonazistas? Me parece que ou eles estão sendo insinceros ao fazer a acusação, e realmente não acreditam que existe um Kommando neonazi em algum bunker tramando a tomada do país, ou então estão sendo monstruosamente negligentes para com a própria segurança.

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LINK PARA A MATÉRIA DA FOREIGN POLICY: https://foreignpolicy.com/2020/10/29/how-brazil-was-ukrainized/

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